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Milionários, caiçaras e herdeiros disputam posse de terras em Paraty

Comunidades tradicionais de Paraty se mobilizam após leilão de terras surpreender moradores - Divulgação/Prefeitura de Paraty
Comunidades tradicionais de Paraty se mobilizam após leilão de terras surpreender moradores Imagem: Divulgação/Prefeitura de Paraty
do UOL

Do UOL, em São Paulo

14/06/2025 05h30

Quando Eder Costa, 33, recebeu no WhatsApp uma mensagem que dizia que a casa da família dele e as de vizinhos seriam vendidas em um leilão, achou que fosse golpe. "Mas, depois a coisa foi se materializando", diz ele, que é integrante de uma comunidade tradicional caiçara em Ilha do Araújo, em Paraty, no litoral sul do Rio de Janeiro.

O que aconteceu

A Justiça do Rio autorizou o leilão de 49 lotes em quatro municípios no estado, incluindo a capital, entre maio e junho deste ano. Paraty lidera a lista com 32 lotes, dos quais 29 já foram arrematados, por cerca de R$ 5 milhões no total. O mais caro, um terreno localizado em Prainha da Praia Grande, a cerca de 10 km do centro de Paraty, foi vendido por R$ 665 mil.

Os terrenos fazem parte do inventário judicial do português José Maria Rollas. Ele adquiriu as terras nas décadas de 1960 e 1970 e morreu em 1988. O espólio está sendo istrado por seus herdeiros. Partes das terras estão em uma APA (Área de Proteção Ambiental) e são ocupadas por comunidades com modos de vida tradicionais, protegidos por legislação federal.

Risco de expulsão de famílias que vivem nas terras há gerações. Cerca de 60% dos 750 moradores da Ilha do Araújo e 75 famílias no Saco do Mamanguá podem ser removidos de suas casas.

Moradores souberam do leilão por mensagens no WhatsApp. Gilcimar Lopes, 43, é presidente da associação de moradores de Saco do Mamanguá, enseada localizada em Paraty que aparece no leilão com o maior número de lotes à venda. Porém, a maioria dos terrenos do local não está ocupada por moradores, segundo ele. "Eles ficaram sabendo do leilão por meio de mensagens no Whatsapp. Ninguém foi notificado formalmente", afirma.

Advogados alegam que não houve delimitação precisa dos terrenos leiloados. Joyce e o advogado Onir de Araújo, que também representa moradores, pediram a suspensão do leilão de seis lotes da Ilha do Araújo no último dia 9 de junho. Eles também solicitaram à Justiça que o MPF (Ministério Público Federal) se manifeste no processo, já que envolve a comunidade tradicional dos caiçaras. "O processo do leilão está cheio de irregularidades", critica a advogada Joyce Santi, que representa os caiçaras da Ilha do Araújo na Justiça.

Ilha do Araújo é a mais afetada com leilão

Áreas leiloadas em Paraty - Reprodução - Reprodução
Áreas leiloadas em Paraty
Imagem: Reprodução

Cerca de 450 moradores da ilha podem ser afetados. Eder, que trabalha como gerente de uma pousada na ilha, lidera um grupo de caiçaras formado para discutir o assunto. Em 2015, um levantamento mostrou que existiam 292 edificações na ilha, incluindo moradias permanentes, casas de veraneio e estabelecimentos comerciais como restaurantes, pousadas e mercados.

Milionários também estão preocupados com a situação, temendo perder casas de veraneio construídas nas áreas. "São proprietários paulistanos e cariocas de alta renda que utilizam as praias para férias, não são moradores", conta uma pessoa que acompanha a disputa judicial, sob anonimato.

Os advogados também questionam a validade dos títulos das terras de Rollas. Eles também alegam que as comunidades não foram notificadas sobre o leilão e que a delimitação de cada propriedade não está clara na descrição dos lotes. "Não foram intimados, nem notificados. Não verificaram se tinha alguém no local, por exemplo", afirma a advogada.

'Angústia profunda'

Eder trabalha como gerente de uma pousada na Ilha do Araújo - Cedida ao UOL - Cedida ao UOL
Eder trabalha como gerente de uma pousada na Ilha do Araújo
Imagem: Cedida ao UOL

Eder diz que vive uma angústia profunda desde que soube do leilão. "Meu pai nasceu nessa casa, nós, os filhos, nascemos e crescemos aqui também. Fomos comprando e construindo mais casas no mesmo local. A intimidade que a gente tem com esse território não é só apego, é uma extensão da gente", conta. Segundo ele, o conselho da APA de Cairuçu, em Paraty, iniciou o processo de regularização fundiária. Porém, as tratativas estariam paralisadas desde 2022.

Na semana ada, o risco dos caiçaras perderem suas casas ficou mais evidente. Uma equipe de topógrafos foi até a Ilha do Araújo para medir as dimensões de um dos lotes leiloados, mas foi impedida de entrar pelos moradores.

Para os advogados, isso reforça a tese de que as delimitações das propriedades não foram detalhadas no leilão. Só com esse detalhamento e após pedir o registro da carta de arrematação em cartório é que o comprador pode pedir a emissão de posse do terreno. Isso não foi feito, segundo Joyce Santi.

Uma reunião com a presença de caiçaras será realizada na próxima segunda-feira (16) na Câmara de Paraty para discutir o leilão.

As terras pertencem aos herdeiros da família Rollas, diz advogado

Advogado da família Rollas afirma que não há disputa porque os terrenos possuem registros legais. Luiz Nizzo de Moura diz que as terras foram adquiridas legalmente e que a venda é direito legítimo dos herdeiros. "Nem todas as pessoas que vivem ali, possivelmente, têm algum direito patrimonial decorrente de títulos. Os caiçaras, por exemplo, quando eles falam 'nascemos aqui e aqui ficamos', é muito provável que tenham nascido em uma ocupação sem justo título e foram ficando".

Nizzo nega que haja irregularidades no leilão. Ele, que representa a família desde 2015, afirma que todas as áreas leiloadas são de propriedade do José Maria Rollas por aquisição, sendo a maioria delas arrematadas em processos judiciais ou istrativos decorrentes da falta de pagamento de algum tributo do proprietário anterior. "Não existe conflito de terras nesses imóveis que foram leiloadas. Todas as áreas têm certidão de registro de imóveis em nome de José Maria Rollas, segundo o advogado.

Visionário na compra de terras no Brasil, descreve o advogado sobre Rollas. Natural de Figueira da Foz, o português chegou ao Brasil em 1914, com 19 anos. "Diversos estrangeiros sempre viram no Brasil na questão de terras algo especial que não era muito valorizado pelos brasileiros. Então, eles compravam terras, provavelmente, pela experiência europeia de saber da relevância e do valor patrimonial de terras", explica Nizzo.

O advogado afirma que o espólio foi feito com georreferenciamento a partir de dados da certidão de registro de imóveis. "As propriedades são registradas com sua delimitação segundo os parâmetros e possibilidades técnicas da época do registro. O que acontece atualmente é que os registros modernos exigem um maior detalhamento da área objeto de registro, quando acontece uma transferência, por exemplo. Os registros que não têm transferência se perpetuam nas condições que foram realizados".

O português teve seis filhas, algumas já mortas. As que estão vivas não demonstraram interesse em ficar com as terras que foram à leilão. O advogado diz que "o processo sucessório é feito a partir da transferência do bem para o herdeiro. Se não interessa ao herdeiro a sucessão daquele patrimônio, ele tem o direito, havendo decisão judicial e consenso, de fazer a venda desse bem e pegar o dinheiro".

ICMBio diz que acompanha o caso em Paraty

O ICMBio instaurou procedimento interno, alertou sobre sobreposição com áreas protegidas e notificou os responsáveis pelo leilão. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade afirma que encaminhou o caso à Procuradoria Federal Especializada e ao Ministério Público Federal, considerando, sobretudo, o risco de interferência nos objetivos de criação da Área de Proteção Ambiental de Cairuçu.

A maioria das glebas negociadas em Paraty se sobrepõem a territórios tradicionalmente ocupados por comunidades caiçaras, o que amplia significativamente o risco de conflitos sociais decorrentes dessas transações envolvendo pessoas que jamais exerceram posse nas áreas.
ICMBio

O UOL entrou em contato com o Ministério Público Federal e aguarda retorno. Se houver resposta, o texto será atualizado.

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