'Voltei a Valadares cheio de dívidas': deportações nos EUA desafiam cidade
João Vitor Batista Alves, 26, natural de Governador Valadares (MG), deixou um emprego estável no Rio para reencontrar a família nos Estados Unidos. O plano não deu certo: ele foi pego na fronteira, preso e deportado um mês depois.
De volta a Governador Valadares, uma das maiores "exportadoras" de imigrantes para os EUA, Alves teve de contrair mais dívidas para conseguir voltar a trabalhar, agora como motorista de aplicativo.
Tinha esperança de que daria certo, fui confiante. Voltei para Governador Valadares cheio de dívida e, com os juros, elas se acumularam. Fiquei em uma situação bem delicada.
João Vitor Batista Alves
A situação de Alves ilustra um problema maior: pessoas que voltam deportadas dos Estados Unidos enfrentam, em geral, dificuldades financeiras —e as cidades que as recebem de volta precisam se preparar para acolhê-las.
'Viagem prejudicou tudo'
Alves conta que nunca teve o sonho de morar nos Estados Unidos. "Meu sonho era o de estar perto da minha família." Os parentes estão nos Estados Unidos há anos—a mãe conseguiu atravessar de forma indocumentada há cinco anos. Além dela, ele também tem tios e primos que já construíram a vida no país.
A travessia deu certo para minha mãe, tios e primos. Fui vendo eles conquistando coisas na vida. Ela sempre me falava sobre ir para lá e tinha vários contatos, possíveis empregos. Parecia viável.
João Vitor Batista Alves
Ele investiu cerca de R$ 34 mil para fazer a travessia. Antes disso, tinha um emprego estável como motoboy na capital fluminense, e o chefe "gostava muito" dele. Para ir aos EUA, ele teve de vender a moto e ainda deixou a namorada.
O jovem foi para lá no dia 3 de dezembro pelo cai-cai, a estratégia de atravessar a fronteira pelo México, indocumentado. Chegou pedindo asilo, mas não deu certo.
Fiquei preso quase um mês e meio e, no último mês, fui transferido para vários estados. Era muito difícil porque eles faziam de tudo para deixar a gente separado de outras pessoas que falassem português. Parece que é para entrar no nosso psicológico. A parte mais traumatizante foi ficar um mês e meio acordando e só ouvir outros idiomas, como chinês, russo, sem conseguir me comunicar.
João Vitor Batista Alves
Alves foi deportado em fevereiro, no segundo voo de brasileiros expulsos do governo Trump. Na época, ele contou ao UOL que ficou "amarrado" e comendo apenas "pão e água".
Com a deportação, agora Alves se vê debruçado em dívidas. Além do investimento inicial para ir aos Estados Unidos, o ex-motoboy também entrou em um consórcio para ter um carro e poder trabalhar como motorista de aplicativo em Governador Valadares.
Tenho resquícios dessas dívidas que fiz para ir, tenho de trabalhar bastante, não está sendo fácil. Isso tudo deixou marcas financeiras. Estava com a vida estabilizada no Rio e em um relacionamento sólido. E essa viagem acabou prejudicando tudo.
João Vitor Batista Alves
Prefeitura lança serviço de urgência
Com o anúncio das deportações, a Prefeitura de Governador Valadares lançou, em caráter de urgência, um serviço de apoio ao valadarense em situação de deportação —o intuito é acolher e orientar pessoas que retornam involuntariamente à cidade.
O atendimento começa, de forma urgente, com um call center. A pessoa que foi deportada liga em um número que funciona das 8 horas às 22 horas: (33) 3035-0001. O call center fornece informações iniciais e dá um direcionamento imediato às famílias.
Depois, é feito encaminhamento para um Centro de Referência de Assistência Social (Cras), onde há atendimento psicossocial. A pessoa pode ser encaminhada para emissão de segunda via de documentos, atualização do Cadastro Único do governo federal e receber orientação sobre benefícios sociais.
As pessoas deportadas também são informadas sobre o banco de empregos no município e, se necessário, o aluguel social.
A intensificação dos esforços deu-se em virtude do aumento do número de deportações sob a istração do novo governo de Donald Trump.
Prefeitura de Governador Valadares
O município não informa o número de atendidos. "Esses dados são tratados de forma interna e sigilosa, visando evitar o estigma aos migrantes e preservando a imagem do município."
'Como vai começar a trabalhar?'
Especialistas dizem que é preciso pensar em políticas públicas de acolhimento para apoiar a reintegração de deportados. Além da iniciativa de Governador Valadares, o governo federal também começou a disponibilizar um centro de acolhida para deportados no aeroporto de Confins, em Belo Horizonte.
As pessoas muitas vezes chegam aqui sem conseguir telefonar para a família. E o problema não é só o recurso financeiro, mas também a saúde mental. Como uma pessoa que ou por um trauma vai começar a trabalhar? É necessário acompanhamento e atendimento.
Sueli Siqueira, especialista em estudos migratórios da Univale (Universidade Vale do Rio Doce)
Sueli lembra que as deportações causam impacto às finanças das famílias. Além das perdas financeiras pela tentativa de travessia, há pessoas que perdem dinheiro por não terem a possibilidade de retornar às próprias casas após serem detidas pelo ICE, a polícia de migração.
Alguns enviavam recursos para a família aqui todo mês e são pegos e deportados, deixando todos os recursos lá, sem possibilidade de retornar. Há pessoas que estavam construindo casas, outros que perderam equipamentos de trabalho. Essas pessoas chegam aqui já com dívidas e totalmente perdidas. (...) E não são pessoas apenas de Governador Valadares, já que os deportados estão em várias cidades de Minas Gerais e outros estados.
Sueli Siqueira, especialista em estudos migratórios da Univale
Por que Governador Valadares?
A cidade de Governador Valadares é conhecida pelas migrações aos EUA, mas não é a única. Três cidades no entorno lideram um ranking do IBGE de municípios de onde mais saem brasileiros rumo aos Estados Unidos, mostrou uma reportagem da DW.
Um conjunto de fatores configurou esse movimento migratório. Ele começa lento, com as primeiras pessoas, e vai se adensando ao longo de 10, 15 e 20 anos. As pessoas buscam oportunidades de trabalho mais bem remuneradas --normalmente já tinham trabalho, mas veem uma oportunidade de ganhar mais e consumir mais.
Sueli Siqueira, especialista em estudos migratórios da Univale
Moradores e ex-moradores da cidade construíram uma rede de apoio no país —o que retroalimenta o fluxo.
Essa rede reduz o constrangimento. É um elemento fundamental para a manutenção e o crescimento do fluxo. (...) Às vezes as pessoas vêm de cidades de 7 mil habitantes, nunca estiveram em um aeroporto e pegam um avião pela primeira vez. Por meio dessa rede, as pessoas conseguem indicação para os primeiros trabalhos e podem frequentar mercadinhos que têm produtos daqui, mesmo sem falar o idioma.
Sueli Siqueira, especialista em estudos migratórios da Univale
A especialista diz que o número de migrações de Valadares para os EUA deve diminuir, com as deportações e o discurso de Trump que criminaliza o imigrante. E a tendência é que os moradores comecem a fazer projetos de vida no próprio país.
O grande impacto que temos é a redução da migração --pessoas que estavam com projetos de migrar voltam atrás. Conheço uma pessoa que tem família nos EUA, queria se mudar para lá, mas desistiu e optou por fazer um vestibular aqui. Acredito que haverá muitas mudanças de planos.
Sueli Siqueira, especialista em estudos migratórios da Univale